Umm Gazala
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A sombra do vento
cai sobre o chaparro;
fico com a sensação
de que o calor, exausto,
se deu por vencido.
Apenas aqui me sento
porque um alentejano
só se senta para pensar.
O vento sopra
e a sombra abraça-me.
Penso em negar-lhe o momento;
atroz este meu pensamento
que espera sempre mais
de quem dá menos.
Talvez tenha sido uma má escolha;
— mea-culpa,
há mais chaparros nesta terra e
as escolhas passam a ser histórias
(e as histórias, um dia, serão vida).
Mas aqui, e agora:
só me apetece pensar.
Suavemente, assim como um sopro
que acalenta os ramos deste chaparro,
o erro faz-se soar;
desde a minha própria sombra
escuto a voz que me quer guiar.
É o vento,
é a terra,
é a natureza,
é o amarelo,
é a luz e a penumbra
e é, também, este chaparro.
Graças à desertificação deste lugar
os meus olhos desenham uma planície sem obstáculos.
Não há prédios, casas, ruas ou estradas;
não há pessoas, carros, caos ou nada.
Na verdade,
sei que anda por aí um pastor;
apesar de não o vislumbrar,
o som cintilante dos chocalhos
dança ao ritmo do cajado que
solenemente bate no chão.
Como é aconchegante estar rodeado de nada!
Sem paredes, sem ouvidos,
— só estar aqui me basta.
Fotografia de Daniel Janeiro
Mestre sapateiro
sediado em terra singela;
martelo na sola,
martelo ao sol,
mão que segura a sovela
conduz o cerol.
Avental posto
conforta o sapateiro;
formas de madeira,
curvas formosas,
desenho de um roteiro
trilhado pelas suas costas.
É o peso do final do labor;
sim, a dor que ele carrega
a fome supera,
— mais forte é o amor
na casa que o espera.
São caminhos,
rumos e encruzilhadas;
são solas que
por esta estrada fora
seguem imortalizadas
em pegadas de outrora.
De regresso,
já com os sapatos na mão,
esquecemos quem somos
e voltamo-nos a calçar.
Fotografia de Eidia Dias
A ceifeira canta com sua branca tez,
alegre, no primeiro dia de labor;
canta mágoas fingidas sobre o tempo
só o futuro lhe concederá louvor.
O dia alto e o trigo iluminado
ecoam calor pelos campos fora;
pobre ceifeira que na ceifa cantando
lembra o amanhã, batalhas de outrora.
Vestes de cores floridas,
ar fresco, paisagem serena;
pobre ceifeira que na ceifa cantando
deu-lhe o sol, ficou morena.
Hoje, são as máquinas
que ceifam a seara herdada:
desta evolução que nos faz ser mais
e ter a ceifeira para sempre recordada.
Podemos afirmar com grande à-vontade:
— Foi o cantar da ceifeira a razão
em haver tão próspera actualidade.
Fotografia de Artur Pastor - "Ceifeira" (the Reaper) 1944-46 em br.pinterest.com
Trago na mochila um caderno com cem páginas
e só cinco estão escritas. Sinto a cabeça
pesada e as costas leves. Nem quero
imaginar o dia em que chegar às noventa
e cinco páginas escritas de pensamentos vãos.
Talvez a tinta da esferográfica não torne
o caderno mais pesado. Talvez a
cabeça não fique mais leve à medida que
escrevo estes meus pensamentos
supérfluos. Tudo em mim nasce na
esferográfica e habita neste caderno.
Tudo, excepto a dor que sinto nas costas.
As oliveiras falam através do tempo.
Não é por isso que as invejo;
é, sim, por terem passado
por tanto ou tão pouco,
sem nunca moverem raízes.
Escuto-as
sem pressa de abalar.
Ramos milenares sustentam
os mais atrevidos pássaros cantantes;
A mando de quem vieram
para me agoirar?
Nesse instante
o tempo faz-se.
Percebo que tudo é parte da melodia.
Os pássaros, as galinhas, os perus,
os cães, os porcos, os leitões, as ovelhas,
nós e tu.
Enquanto a vida acontece,
o vento embala as folhas pontiagudas
e faz soar o toque que faltava.
Melancolicamente escuto
a mais harmoniosa sinfonia.
Pergunto-me,
são vozes intemporais?
são séculos e milénios imortais?
são histórias que os livros não nos contam?
são poesias?
Não preciso serrar um tronco e contar
os anos que descortinam a sua idade,
velhice não é experiência,
é apenas a sabedoria da efemeridade.
Por favor, traduzam-me
as palavras sábias deste olival.
E rápido…
antes que a música acabe,
antes que o tempo termine sem cor.
Nada faz enlouquecer o tempo;
excepto a pausa anunciada
de uma cantiga de amor.
Pior que ansiar a lembrança
é o tempo que subsiste no passado;
Quem subsiste no passado
desvive no presente;
Pior que desviver no presente
é ter recordações do futuro.
Enquanto a lua sobe
e no mar se envolve,
a areia sombria
toca na maré fria.
Enquanto a lua sobe
sentir para dentro; porém,
vai-se construindo a vida.
Observa este pôr do sol;
o melhor que vimos
até hoje.
Avisa-me com exatidão
sobre a chegada do momento
que merece ser capturado
em prol desta recordação.
Guardá-lo
seria a melhor desculpa
para que haja futuro
− e para mais tarde o recordar.
Explica-me, por favor,
como esse teu alento
tão efémero quanto o vento
criou no céu
aquelas manchas de vapor?
Deus tirou-me o momento
para que na penumbra
o pudesse contemplar
e tornar-me visível
aos olhos
de quem me crê.
Naquele instante não te quis entender
mas continuei a acreditar em ti.
Daqui eu sei
qu’este horizonte é tela pintada
pelas tuas mãos frias,
tons quentes,
maresias.
Tiro mais uma fotografia
− a última do dia,
e espero que renasças
para te voltar a eternizar.
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